Os quitutes do tabuleiro da baiana, os sons e cores dos blocos de afoxé, os movimentos das danças populares, os traços e formas da arte e os detalhes de nossas vestimentas provam o quanto estamos próximos da África. No programa ‘Influências’, quarto episódio da série ‘Mojubá’, entendemos como o nosso cotidiano foi enriquecido pela tradição religiosa africana e percebemos que a distância entre os dois continentes não é empecilho para a proximidade de suas culturas.
Há cerca de cinco séculos, os navios negreiros trouxeram ao Brasil bem mais do que negros africanos que serviriam como escravos aos senhores de engenho. Junto com este povo de riquíssima cultura vieram as matrizes da culinária, da música, das artes e da religiosidade brasileiras. E assim como o acarajé, o samba e os rituais do candomblé e da umbanda, diversos elementos da tradição africana povoam até hoje o cotidiano do país.
Júlio Tavares – antropólogo carioca
“A comida sempre desempenhou um papel de ligação deste mundo material com o mundo espiritual. Através da comida acontece, na verdade, uma espécie do aproximação entre os habitantes de ambos os mundos. Dar comida a santo é, simbolicamente, compartilhar com o universo dos orixás o estado de vida existente nesta terra”.
Carlos Negreiros – baterista carioca
“Cada entidade tem uma comida especial que passou a constituir também um prato característico da culinária brasileira, entre eles o acarajé e o abará, assim como o dendê e a pimenta. O mais interessante é que o significado de qualquer alimento vai além do que podemos ver”.
Também não é possível determinar a quantidade de artistas que se inspiraram na tradição e na espiritualidade africanas para definir a estética de sua obra. Um deles foi o pintor Rubens Valentim, nascido em Salvador em 1922 e morto em São Paulo em 1991. Valentim fez um estudo original dos signos do candomblé e dos emblemas dos orixás nagôs para criar grafismos geométricos que renovaram o cenário artístico da Bahia no final da década de 40.
Ronaldo Rego – artista plástico carioca
“A arte nasceu, quase sempre, de um sentimento religioso. Grandes estilos artísticos, como o gótico e o árabe, foram motivados pela religião. A China se inspira no budismo e com as raízes africanas não poderia ser de outra forma. A arte que o Brasil vem criando tem, obviamente, conotações religiosas”.
Zeca Ligiero – antropólogo carioca
“Historicamente, temos um marco, que é a Semana de Arte Moderna de 1922, quando alguns pintores descobriram os modelos negros e a estética afro, embora haja poucos registros sobre isso. Di Cavalcanti e Portinari ficaram conhecidos por suas mulatas de lábios carnudos e pelos negros musculosos. Apesar de utilizarem o negro como mão-de-obra, esses pintores assimilaram a estética africana.
É interessante notar como a cultura negra chegou no Brasil praticamente dentro do ser humano africano. Ele não trouxe fotos nem gravuras: Trouxe memórias e a partir delas fez a sua história. Toda tradição é oral, que corre de geração em geração e, nesse sentido, é difícil separar arte, religião e vida”.
Através da música, da dança e da espiritualidade, o candomblé expressa a harmonia dos ritmos do universo e faz circular as energias vitais. A força desta tradição se espalhou pelos quatro cantos do país, formando novas expressões culturais genuinamente brasileiras.
Nei Lopes – escritor carioca
“Câmara Cascudo, nosso saudoso etnólogo, pesquisou e escreveu sobre a tradição dos festejos populares que vêm desde a época colonial, começando com as congadas, passando pelos cucumbis e chegando às modernas escolas de samba. Os desfiles carnavalescos de hoje evocam os cortejos dos reis banto que seguiam com suas embaixadas para visitar ou mesmo guerrear aldeias vizinhas, portando estandartes e tocando instrumentos. É toda uma tradição que veio desembocar em coisas que parecem distantes, mas não são”.
Zeca Ligiero – antropólogo carioca
“Os ranchos são criados pelas negras baianas ligadas ao candomblé no final do século XIX. Elas fixam residência no Rio de Janeiro, então capital do país, e são muito festeiras. A partir de um determinado momento, o rancho, que antes circulava no Natal, passa a sair pelas ruas no Carnaval. A multiplicação desses ranchos, juntamente com os cordões - que eram blocos carnavalescos de negros, mas um pouco menos organizados – é, certamente, uma das principais origens da criação das escolas de sambas”.
Vovô – Ilê Aiyê
“Os blocos afros da Bahia sempre foram ligados aos terreiros de candomblé. Na verdade, levam o nome de afoxés e são mais conhecidos como candomblé de rua. O meu avô criou um bloco chamado ‘Africano leal’. O Ilê Aiyê, do qual faço parte, nasceu num terreiro e a maioria de seus integrantes é povo-de-santo. É também o bloco que agrega mais mulheres e se tem o cuidado de preservar a religiosidade”.
Agnaldo da Silva – Filhos de Gandhi
“O afoxé Filhos de Gandhi foi fundado em 18 de fevereiro de 1949 por estivadores portuários de Salvador que queriam de levar paz à avenida. Inspirados em Mahatma Gandhi, vestiram toalhas e lençóis brancos como fantasia, em referência aos trajes indianos e, através de atabaques, agogôs, xiquerês e do canto para os orixás, os Filhos de Gandhi vem, esses anos todos, associando a filosofia hindu à sonoridade africana”.
Júlio Tavares – antropólogo carioca
“Todas as atividades da vida cotidiana dos africanos passam por rituais e nos remetem ao mundo religioso. A música, por exemplo, é a via de acesso ao sagrado por causa do ritmo, o principal elemento da musicalidade africana. Todos os orixás dançam em torno de um círculo, movidos pelo toque dos tambores, pela oralidade e pelo canto específicos”.
Maria de Lourdes Siqueira – antropóloga maranhense
“A sociedade brasileira é construída sobre uma revisão das civilizações africanas. A dinâmica da sociedade é a mesma há cinco séculos, mas as questões mudaram e hoje temos a lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira na rede escolar.
Finalmente, vislumbramos a legitimação de um conhecimento que já transmitíamos através das organizações de resistência negra, do Teatro Experimental do Negro, da Frente Negra de Libertação, da imprensa negra, dos quilombos, dos terreiros de candomblé, dos afoxés e, mais recentemente, dos blocos afros. A sociedade brasileira sempre buscou inspiração africana, mas nunca reconheceu que era a base de sua cultura, porque havia o preconceito de não legitimar o que vinha dos negros africanos ou dos indígenas”.
Texto retirado do site: http://www.acordacultura.org.br/mojuba/
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