quinta-feira, 25 de novembro de 2010



Candomblé, afinal o que é?

Jairo Santiago
Professor Doutor em Comunicação /ECO/UFRJ

Desde o século XVI milhões de negros vindos da África chegaram à costa brasileira, são de diversas etnias, que, mesmo considerada a diversidade cultural, comungam do fato de terem perdido as referências territoriais e comunitárias.



Restavam-lhes apenas os valores e princípios que demarcavam sua visão de mundo.

Esse grupo utiliza as mais diversas formas e táticas de sobrevivência.
Importante que se diga, que não se tratava apenas de uma sobrevivência espiritual, mas principalmente do corpo, de uma forma de viver.

Diante da adversidade da escravidão, era preciso recompor as referências perdidas. A religiosidade se prefigurou como um dos caminhos possíveis nessa empreitada, e o Candomblé, dentre outras manifestações religiosas se singularizou na manutenção de valores e princípios negros na diáspora. O Candomblé em sua expressão de maior magnitude, a comunidade-terreiro, permitiu a recriação de laços comunitários e territoriais aniquilados com a escravidão.

Mas afinal o que é Candomblé?

Em primeiro lugar se faz necessário pensar que se trata de uma poderosa síntese que se processou em território brasileiro, sendo assim resultado de um longo e doloroso processo histórico, no qual os negros escravizados e, posteriormente os libertos, tecem laços comunitários e territoriais, consideradas as diversidades adversidades. O negro se moveu, resistiu, se comunicou entre os fios da rede da repressão.

Entender essa tensa rede de acordos e enfrentamentos, de avanços e retrocessos, de disputas e acertos internos é o longo caminho para se compreender o que é o Candomblé. Nesse sentido, se lança mão aqui de uma metáfora para se tentar chegar a um primeiro entendimento do que seja candomblé, ou pelo menos uma de suas traduções possíveis:

Imagine que uma pessoa viaja até a África e que lá chegando conhece um determinado prato da culinária local, interessando-se pelo referido prato, solicita a receita e descobre que alguns dos ingredientes não existem no Brasil, e, mesmo assim, consegue os ingredientes e volta ao Brasil, onde resolve reproduzir o prato, mas se propõe a algo mais, ou seja, resolve inventar um novo prato, que embora contenha ingredientes africanos não lembra nenhum prato conhecido na África.

Portanto é um prato brasileiro. Assim é o Candomblé, pois mesmo considerados os elementos simbólicos e religiosos africanos (ingredientes) é resultado do processo histórico na diáspora, é síntese da inventividade dos partícipes. As palavras inventividade e recriação são fundamentais à compreensão do papel do negro escravizado ou liberto na diáspora.

O Candomblé agrega territorialmente elementos que no território africano eram dispersos e objeto de cultos locais e até isolados. Muniz Sodré nesse sentido afirma:

Do lado dos ex-excravos, o terreiro de (de candomblé) afigura-se como a forma social negro-brasileira por excelência, por que além da diversidade existencial e cultural que engendra, é um lugar originário de força ou potência social para uma etnia que experimenta a cidadania em condições desiguais. Através do terreiro e de sua originalidade diante do espaço europeu, obtêm-se traços de fortes subjetividade histórica das classes subalternas no Brasil (SODRÉ.1988,p.18)

Retomando o conceito de comunidade-terreiro, percebe-se que a mesma implica além da junção de elementos dispersos e distantes, uma nova concepção de comunidade, que agrega vivos e mortos, implica em uma relação de troca entre os vivos e os ancestrais, entre deuses e seres humanos, implica ainda em uma visão de ser humano que negocia com os deuses e ancestrais uma boa vida na terra, uma vida alegre, criativa e em constante movimento, pois para o Candomblé nada é estático, tudo é movimento, tudo é troca constante.

A idéia de movimento remete a um dos elementos mais importantes do Candomblé, que a figura de Exu, senhor do movimento sem fim, é responsável pela existência dinâmica da realidade, tudo muda, seres humanos, árvores, pedras, todos são parceiros em uma relação que é dada pela dimensão de um jogo cósmico. As possibilidades vão sendo construídas e destruídas o tempo todo. O segredo da regra do jogo encontra-se na palavra acerto, ou seja, acertar um ponto, fechar um acordo, alterar uma situação, enfim simular e dissimular a realidade. Uma grande figura do Candomblé, o professor Agenor Miranda da Rocha , dizia com propriedade: Candomblé é um sistema cuja base é Exu.

Assim sendo, na impossibilidade de um ponto fixo de referência, e de uma conversão à uma verdade eterna e imutável, como caminha a civilização ocidental
desde Platão, o Candomblé acena sempre com a possibilidade de se mudar o mundo e o destino. Busca-se enganar a morte, nem que seja por uma vez. O candomblé não se prefigura como um espaço de conversão à uma única verdade. Pertencer a uma comunidade-terreiro não exige o pressuposto da adesão a verdade, basta estar ali. Em uma festa ou cerimônia pública não se pergunta se a pessoa acredita ou não na divindade presente, ou nos princípios ali vigentes.


Os deuses existem independentemente da fé. Deve se entender Candomblé como um espaço de enfrentamento do projeto universalista da civilização ocidental. Na comunidade-terreiro o homem é capaz de estabelecer uma relação de troca sem que sobre um resto a ser apropriado economicamente e em favor de algum grupo
dominante .

A comunidade-terreiro recria a referência territorial-comunitária perdida em razão da escravidão. Os negros e seus descendentes reconstituem possibilidades de enfrentar o mundo que lhes é hostil e adverso.


Candomblé e Modernidade – considerações finais

O Candomblé, embora não se possa dizer que esteja fora da modernidade, implica em pontos de enfrentamento a esse projeto de ocidentalização do mundo pela lógica do mercado. Alguns aspectos da comunidade-terreiro apontam na direção de negar a modernidade. Entre esses pontos podem ser destacados: a relação com o corpo, que deixa de ser uma mercadoria, a impossibilidade da reprodução ad infinitum dos bens, a relação com o tempo e com o espaço.

A crença na palavra do pai fundador que se traduz no culto à ancestralidade, o reforço do sentido coletivo do agir humano que se choca frontalmente com o individualismo moderno; a crença no movimento constante da vida e dos homens, a crença na palavra e a desnecessidade de contratos escritos para garantir o cumprimento de um acordo e finalmente a negação de um dos sentidos da existência, a noção de axé. Para os adeptos do Candomblé a vida é um ato de alegria que se perpetua entre os parceiros do cósmico. Mas viver o hoje não implica uma visão pós-moderna de vida, um imediatismo infrutífero, mas sim, uma relação de ética comunitária, a felicidade de um deve estar imbricada com a felicidade de todos. Afinal isto é Candomblé.



Referências Bibliográficas

SODRÉ,Muniz, A verdade seduzida: Por um conceito de cultura no Brasil: Rio de Janeiro,CODECRI, 1983.
___________, O terreiro e a cidade: A forma social brasileira, Petrópolis: Vozes,1988.
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