quarta-feira, 22 de setembro de 2010

"BAGUÁS", OS NEGROS REPRODUTORES

Meu amigo e companheiro de trabalho na cia de dança afro Njo Imolé Rafael Araújo, também é ator, aliás todos do grupo são atores entre outros é claro rs!, e ele está com uma pesquisa sobre este tema, dos negros reprodutores os "Baguás", ele apresentou uma parte deste processo lindo e resolvi postar no blog sobre este assunto, para observarmos o quanto a escravidão foi cruel, desumana, humilhante e descaracterizadora para nossos ancestrais.




No século 19, escravos eram executados se engravidassem escravas sem serem "credenciados"

Em março de 1844, um escravo negro de Três Riachos pagou com a vida por ter engravidado uma escrava de uma fazenda de São Miguel, Biguaçu. Parece absurdo, mas aconteceu. É o que conta Jaime Coutinho, 78 anos, um dos cidadãos mais antigos da comunidade de São Miguel, lembrando-se de antigas histórias contadas de geração a geração.

A execução do negro "Rafael" foi registrada e consta em vários livros sobre a história do município de Biguaçu. No entanto, no documento, não se informava o motivo da sentença do escravo. Os historiadores especulam que, para receber a pena capital, o escravo deve ter assassinado seu senhor. Errado, testemunha Jaime Coutinho. O escravo foi sentenciado à morte porque não era "baguá", isto é, o "garanhão" credenciado para engravidar escravas.

O infeliz teve o azar de o dono da escrava engravidada reclamar para seu senhor. Este último resolveu "dar uma lição" ao escravo Rafael. Sua condenação à morte serviria de exemplo aos outros escravos que viessem a "se engraçar" com as escravas sem a autorização dos donos delas.

Por que tamanho castigo? Os senhores de escravos da região de Biguaçu no século 19 pensavam que, se as escravas fossem engravidadas por escravos desobedientes, os filhos dessa união puxariam a índole do pai, isto é, tornar-se-iam desobedientes. Daí os senhores selecionarem os "machos" de suas escravas. Esses "garanhões" eram chamados de "baguás", informa Coutinho, lembrando de velhas histórias de sua mãe Maria da Rocha Linhares (dona Lola, 1900-1996) e outros parentes seus nascidos no século passado, hoje falecidos.


Negros de classe
No século 19, os negros não eram considerados gente. Tanto é que sequer tinham sobrenome. O costume é o mesmo de hoje com relação a cachorros, gatos e outros bichos. Por acaso, alguém dá sobrenomes aos animais? Sendo considerados "animais", os senhores faziam o mesmo que fazem hoje criadores de éguas de raça: não permitem que suas éguas sejam emprenhadas por "pangarés", mas por garanhões de alta linhagem escolhidos a dedo. Afinal, os criadores de cavalos de raça querem prole puro sangue tal como os senhores de engenho do século passado desejavam escravinhos fortes e obedientes como os pais "baguás".

Quem eram os "baguás"? Eram os "negros de classe", como eram chamados na época os escravos obedientes e serviçais. Cada senhor tinha seu(s) escravo(s) preferido(s). Estes escoltavam os senhores em suas andanças. Muitas vezes eram tão fiéis ao patrão que denunciavam os companheiros que tramassem alguma coisa contra o senhor. Por isso, os "negros de classe" gozavam de regalias. Não faziam o trabalho duro da roça como os outros escravos. Muitas vezes, em retribuição, o senhor dava a permissão ao "negro de classe" virar "baguá". Mas para ser "baguá" não bastava ser obediente. Era preciso também ser forte e robusto. Se o escravo fosse fiel e robusto, a promoção para "baguá" era rápida.

Segundo Jaime Coutinho, o ritual do "engravidamento" começava com o senhor mandando as escravas irem para o "mato". Logo depois chamava o "baguá". Dava o nome das escravas e ordenava: "Vá capinar com elas". Entendido o recado, o "baguá" partia para a "missão", embrenhando-se na mata atrás das escravas indicadas pelo senhor.

Não se sabe se as escravas resistiam ou cumpriam a "ordem" sem protestar. O fato é que, meses depois, os escravinhos nasciam. Conforme Coutinho, muitos dos filhos dos "baguás" eram vendidos para capitães de navios vindos da Argentina e Paraguai que paravam em São Miguel para abastecer-se de água, vinda de um aqueduto que avançava vários metros após a praia. As crianças eram trocadas por carne.


EXECUÇÃO
Rafael era um escravo de apenas 18 anos. Não se sabe os detalhes de como Rafael veio a conhecer e engravidar a escrava de São Miguel. Sabe-se, segundo Jaime, que o escravo saiu de sua fazenda de Três Riachos, subiu a serra, indo parar em São Miguel.

O escrivão esqueceu de mencionar o dia do enforcamento naquele março de 1844. A forca foi instalada no alto de um morro próximo à igreja matriz de São Miguel, ao redor de uma grande plantação de café. Nesse morro, fica hoje um belo casarão de propriedade da família Nass, do falecido farmacêutico de Biguaçu Helmut Nass.

A execução foi assistida pela população local. Muitos pais trouxeram seus filhos para assistir o "espetáculo", entre eles Thomé da Rocha Linhares, que levou seu filho Manoel, na época uma criança pequena. Thomé foi o primeiro superintendente de São Miguel (mais tarde Biguaçu), governando o município em 1833. Manoel é o avô materno de Jaime Coutinho. "Meu bisavó Thomé levou meu avô Manoel para assistir o enforcamento advertindo o filho a ser bonzinho", observa Jaime Coutinho.

A história sobre os "negros reprodutores" em São Miguel (hoje distrito do município de Biguaçu) é um tema inédito que nenhum historiador ainda explorou. Esse estudo dará, certamente, uma interessantíssima dissertação sobre a história da escravidão em Biguaçu, o quarto município mais antigo de Santa Catarina.

Ozias Alves Jr é jornalista.


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